sexta-feira, 20 de abril de 2012


O toque de Midas arrebita-nos as orelhas


  De acordo com a mitologia grega Midas, Rei da Frígia, foi protagonista de duas das mais conhecidas lendas da antiguidade.
  Reza a história que certo dia Sileno, o mais velho, mais beberrão e mais sábio seguidor de Dionísio (Deus grego do vinho), se perdeu e foi encontrado a errar bêbado e perdido pelos campos da Frígia por alguns camponeses que o levaram, de imediato, à presença do seu Rei. Este decidiu ajudar Sileno a reencontrar-se com Dionísio que, perante tão generoso acto, decidiu conceder-lhe um qualquer desejo. Midas, ambicioso e ávido por riquezas, formulou o seu pedido: desejou ter o poder de transformar tudo aquilo em que tocasse em ouro. Jubiloso com o seu novo dom depressa o testou e confirmou que, de facto, tudo aquilo em que tocava se transformava em ouro. No entanto, esta alegria foi de pouca dura e o que antes lhe parecia um dom começou a parecer-lhe uma maldição. Era-lhe, agora, negado o toque daqueles que lhe eram queridos, a comida já não lhe saciava a fome e, no entanto, era o mais rico dos homens. Depressa se apercebeu do erro que cometera e dirigiu-se de novo à presença de Dionísio implorando-lhe que retira-se a maldição. Este anuiu ao seu pedido. Desde então o Rei Midas abdicou de todas as riquezas e tornou-se seguidor de Pã (Deus grego dos bosques).
  Contudo, a história não fica por aqui. Anos depois, o Rei Midas, fora convidado a assistir a um duelo musical entre Apolo (Deus grego do sol) e Pã, pois este último afirmava ser mais virtuoso nas artes da música. Apesar de Pã ter agradado a todos com a sua flauta, este não foi par para Apolo e a sua lira. Tmolo (Deus grego das montanhas) enquanto júri daquela disputa deu a vitória a Apolo. Indignado, o Rei Midas contestou a vitória de Apolo e este, furioso perante a insensibilidade do rei ao que acabara de ouvir, transformou as suas orelhas em orelhas de burro. Perante tamanha deformidade o rei decidiu tapar a cabeça e deixar crescer o cabelo e as barbas, até que um dia decidiu cortar. Chamou um barbeiro e, antes do corte, fê-lo jurar que guardaria segredo. O barbeiro assim o fez, durante uns tempos, até que o segredo se tornou insuportável de guardar. Resolveu então gritar o segredo do Rei Midas para um buraco no chão e enterrá-lo para que ninguém ouvisse. No entanto, um caniço curvado pelo ventou ouviu e começou a murmurar “O Rei Midas tem orelhas de burro”. O murmúrio do caniço virou clamor e sempre o vento soprava o segredo do Rei ouvia-se por toda a cidade. Por vergonha, e arrependido por não ter tido a prudência e o discernimento dignos de um Rei, Midas lamentou-se até ao fim dos seus dias.

  Dito isto, perguntar-me-ão: em que sentido e de que forma poderão estes mitos da antiguidade clássica estar relacionados com o Direito do Ambiente na conjuntura actual? Ao qual eu respondo: tais mitos não podiam estar mais consentâneos com a realidade vivida actualmente.
  De facto, o Homem moderno em tudo se assemelha ao Rei Midas. A sua ganância e avareza, aliadas a uma incessante vontade de progresso, levaram-no, e ainda levam, a corromper e destruir o equilíbrio natural do Planeta Terra. O seu desejo de progresso (a riqueza que o Rei Midas procurava), possível apenas por possuirmos o dom da inteligência (o dom do Rei Midas de transformar tudo em ouro), fez com que o meio ambiente fosse poluído, destruído ou alterado de forma bastante prejudicial quer para si quer para todas as outras espécies (à semelhança do Toque de Midas que o tornou o mais rico dos Homens e, no entanto, o mais infeliz).
  Mas as semelhanças não ficam por aqui. Apesar de consciente dos efeitos negativos das suas acções no meio ambiente, o seu desinteresse e despreocupação, motivados pela procura de lucros a todo o custo, levam-no a perpetuar actos anti-ambientais e a não equacionar soluções ecológicas quando tais soluções tenham um efeito negativo no lucro possível (à semelhança de Midas que não soube escutar nem soube ser prudente, ficou com orelhas de burro).

  Feita esta pequena analogia, cumpre desenvolver o problema afectação do equilíbrio ambiental e as, possíveis, medidas humanas, nomeadamente no plano do Direito, que façam frente ao flagelo ecológico.

  Como referia Ulpiano no Corpus Iuris Civilis, “ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus” que significa: onde está o homem, aí está a sociedade; onde está a sociedade, aí está o direito[1].
  O Direito é, pois, um “fenómeno humano e social”[2] que surge com a criação da sociedade, e prossegue o fim principal de harmonizar a existência humana em sociedade.
  Aceitando esta premissa como verdadeira, facilmente damos o salto para a protecção do Ambiente através do Direito. Se o Direito são as fundações onde assenta a sociedade humana, então cabe a este tentar resolver os problemas resultantes da acção humana enquanto sociedade. No caso problemas ecológicos e ambientais.
  Não obstante caber ao Direito a protecção do Ambiente, a generalização da consciência ecológica é relativamente recente. Problema desconhecido até então, foi na década de 60 que, através de movimentos radicais (normalmente associados a movimentos sociais nascentes), ganhou projecção. Mas foi a partir da década de 80 que deixou de ser uma bandeira de certos agrupamentos radicais para passar a ser uma preocupação comum a todas as forças políticas. A protecção do Ambiente tornou-se, assim, uma tarefa inevitável do Estado moderno.
  Como o Direito é um fenómeno humano e social, este varia de acordo com a evolução ética e moral do Homem. Se este passa a preocupar-se com o Ambiente, o Direito reflectirá precisamente isso. O que coloca a defesa do Ambiente como um problema jurídico.

  Abordando o problema apenas no plano jurídico, nomeadamente quanto à natureza do direito ao ambiente e à tutela constitucional, cabe dizer o seguinte:

  A protecção do Ambiente inicia-se com a consagração de princípios gerais. Veja-se, por exemplo, o princípio do desenvolvimento sustentável[3] que se traduz no “desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a capacidade de as gerações futuras satisfazerem as suas próprias necessidades”. Veja-se, também, o princípio da prevenção/precaução[4] que estatui que a protecção do ambiente implica, mais do que a antecipação da protecção quanto a perigos ou riscos comprovados, que “o ambiente deve ter em seu favor o benefício da dúvida quando haja incerteza, por falta de provas científicas evidentes, sobre o nexo causal entre uma actividade e um determinado fenómeno de poluição ou degradação do ambiente” (J.J. Gomes Canotilho (coord.), Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa: Universidade Aberta, 1998). Muito importante, também, é o princípio do poluidor pagador. Este princípio atribui aos sujeitos económicos, beneficiários de determinada actividade poluente, o dever de por ela, responderem no que diz respeito à compensação dos prejuízos que resultem para toda a comunidade do exercício dessa actividade. Enfim, há uma pluralidade de princípios que a serem respeitados contribuem para a conservação do Ambiente.

  Juridicamente, devemos considerar o Ambiente como um direito subjectivo ou, pelo contrário, um interesse difuso?
  É uma questão que tem levantado polémicas na Doutrina[5]. Sem pretensões de um desenvolvimento aprofundado sobre o tema posso dizer que na minha perspectiva, a mesma que a do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, o direito ao ambiente trata-se de um verdadeiro direito subjectivo por cinco razões:
  1ª) Não é pelo facto de a teoria dos direitos subjectivos públicos ter andado, historicamente, ligada a concepções positivistas e estatistas que vem a perder o seu mérito dogmático. Além disso, é verdade que o reconhecimento de direitos subjectivos perante as entidades públicas, conferindo aos particulares um estatuto que lhes permitisse lidar com estas num plano de igualdade, é uma decorrência do princípio da dignidade humana. E mais, é certo que, a reconhecer-se um direito subjectivo ao ambiente, evitar-se-ia uma complexa separação entre direitos fundamentais e demais direitos subjectivos públicos;
  2ª) Admite-se perfeitamente que não proceda a objecção da diversidade e multiplicidade dos direitos fundamentais, já que, nas palavras do Professor, “A diversidade e multiplicidade dos direitos fundamentais, como dos demais direitos subjectivos públicos, é antes uma realidade inevitável nas sociedades complexas dos nossos dias, sem que isso signifique pôr em causa a respectiva natureza jurídica substantiva”[6];
  3ª) O facto de os direitos fundamentais se referirem a uma multiplicidade de sujeitos em nada prejudica a sua qualificação como direito subjectivo, uma vez que aqueles podem definir o estatuto dos particulares e daí resultar a susceptibilidade de se concretizar uma relação jurídica;
  4ª) Não é a insusceptibilidade de apropriação individual do bem jurídico que impede a sua consideração como direito subjectivo;
  5ª) A não admitir o direito ao ambiente como um verdadeiro direito subjectivo resultaria que os particulares, perante administração, apenas poderiam ter interesses similares ou opostos. Ou seja, era-lhes negada a qualidade de sujeitos de direito. Mais, do ponto de vista teórico tal implicaria uma distinção entre direitos de primeira, segunda e terceira linha, o que não faz sentido uma vez que todas as posições jurídicas pessoais de vantagem dos privados face à administração são direitos subjectivos.

  Ao nível constitucional, autores como o Professor Doutor Vasco Pereira[7] da Silva entendem que a melhor forma de protecção do Ambiente é através da subjectivização do direito do ambiente, ou seja, através da protecção jurídica individual concretizada nos direitos fundamentais expressos na constituição. Daqui resulta que ao se integrar a preservação do ambiente no âmbito da protecção jurídica subjectiva, garante-se a adequada defesa contra agressões ilegais na esfera individual protegida pelas normas constitucionais, pois os direitos fundamentais constituem posições substantivas de vantagem dos indivíduos dirigidas contra o estado e contra entidades privadas. Estes direitos possuem uma dupla natureza pois, por um lado, são direitos subjectivos e, por outro, constituem elementos fundamentais da ordem objectiva da comunidade. A matéria presente nestes direitos goza dessa “dupla protecção”, a defesa a nível individual e a sua imperatividade perante o ordenamento jurídico e a vida na sociedade[8].
  Veja-se, por exemplo, o artigo 66º da Constituição da República Portuguesa, que surgiu em 1976 tendo sido sucessivamente alterado nas várias revisões constitucionais, e que diz no seu nº1 o seguinte: “ Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.” Mas não nos deixemos enganar pela sua inserção sistemática no Capítulo dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Estamos perante um verdadeiro direito fundamental[9]. Este artigo reforça a dimensão subjectiva do Direito ao Ambiente.
  Veja-se, agora, o artigo 9º alíneas d) e e) da Constituição da República Portuguesa. Proclamam-se como tarefas do Estado  “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais.” (artigo 9º d)), e “proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território.” (artigo 9º e)). Pelo conteúdo das normas supra referidas (artigo 9º d) e e)), estas apresentam natureza programática. Aqui já está em causa um reforço da dimensão objectiva que se traduz na vinculação do estado à prossecução de políticas ecologicamente auto-sustentadas. Pretende-se um estado activo na garantia dos direitos ambientais e não um estado passivo, com meras condutas abstencionistas.
  Tudo considerado, acho que assiste total razão ao Professor Doutor Vasco Pereira da Silva quando defende que o tratamento constitucional do ambiente caracteriza-se por uma dupla consideração da matéria, quer a nível de tarefas fundamentais do Estado, quer a nível de direitos fundamentais.

  Para terminar, cumpre dizer que através da consagração de princípios gerais, que por sua vez inspiram soluções normativas quer no âmbito das entidades internacionais, quer no plano do direito fundamental de cada Estado, quer ainda nas suas próprias legislações ordinárias, a protecção do Ambiente é possível.
  Importa, no entanto, nunca esquecer que o meio ambiente é condição imperativa à existência do Homem e que a sua protecção deve ser procurada sempre.
  Não deixemos que a ganância nos permita transformar este mundo de ouro em lixo, nem permitamos que o nosso egoísmo nos tape os ouvidos às preces de um mundo natural em sofrimento. Não sejamos como o Rei Midas.



Bibliografia:

• Cordeiro, António Menezes; Tratado de Direito Civil Português – Parte Geral, Tomo I; 3ª ed.; 2007; Almedina

• Miranda, Jorge; Manual de direito constitucional, Tomo IV, 2ª edição, 1998 Coimbra editora

• Silva, Vasco Pereira da; Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente; 1ª ed.; 2005; Almedina

 

Martim de Avelar



[1] Romano, Santi. L`ordinamento giuridico. Firenze: Sansoni, 1945, p.21
[2] Cfr. Oliveira Ascensão em “O Direito, Introdução e Teoria Geral, pág. 23.
[3] Inicialmente formulado na Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Direitos Humanos, realizada em Estocolmo, em 1972 e ficou consagrado no art. 1° da Declaração aí produzida. Em 1992, sob égide do Tratado de Maastricht, este princípio passa a constituir um dos objectivos do direito comunitário.
[4]  O Professor Doutor Vasco Pereira da Silva afirma que a distinção entre princípio da precaução e princípio da prevenção não faz sentido recorrendo-se a um argumento de natureza etimológica. Julga existir uma relação de sinonímia entre as duas palavras, pelo menos na língua portuguesa. Ainda assim, muitos autores entendem que se trata de duas coisas diferentes. Na prevenção estariam em causa eventos naturais onde já se conhecem os perigos. Enquanto que na precaução estariam em causa acções humanas e onde ainda não se conheceriam os perigos, assentaria na ideia de risco.
[5] Contraponha-se a posição do Professor Doutor Menezes Cordeiro com a do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva.
[6] Silva, Vasco Pereira da; Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente; 1ª ed.; 2005; Almedina págs. 93 e 94.
[7] . Silva, Vasco Pereira da; Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente; 1ª ed.; 2005; Almedina
[8] Vieira de Andrade, “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, 2010.
[9] Quanto a este ponto, a divergência doutrinária é grande. Quer no sentido de se considerar que o direito ao ambiente não é um direito fundamental, quer no sentido de se defender que não é um verdadeiro direito fundamental mas antes um direito análogo ao qual se aplicaria o mesmo regime dos Direitos Liberdades e Garantias (e, repare-se, mesmo neste ponto há divergência. Uns entendem que se aplica apenas o regime material, e outros que entendem que se aplica todo o regime), quer ainda no sentido de considerar que se trata de um verdadeiro direito fundamental. Outros ainda entendem que esta bipartição, entre D.L.G. e D.E.S.C., é de se recusar.

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